A crise energética da Europa acabou? Quais os desafios da UE no capítulo da energia?

por Carla Quirino - RTP
Energia renovável eólica Pedro Pina - RTP

A crise climática, a invasão russa na Ucrânia e a explosão dos preços da energia deixaram claro: a UE não pode continuar a depender tanto dos combustíveis fósseis assim como de recursos provenientes de terceiros. Diversificar os fornecedores, alargar fontes e apostar nas energias renováveis serão alguns desafios para o bloco.

A 9 de maio de 1951, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês Robert Schuman propôs que as indústrias do carvão e do aço dos Estados da Europa Ocidental se unissem, constituindo-se assim a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.

“A crise energética acabou? Não”, afirma Tomas Marzec-Manser, chefe de análise de gás do provedor de dados ICIS. “Eu diria que estamos a administrar a crise".

Sete décadas depois de o carvão ter sido a pedra angular do bloco, espera-se que a UE caminhe na direção da descarbonização e concerte uma estratégia para se mobilizar em torno das fontes de energia renováveis europeias partilhadas. Este será um dos grandes desafios para o futuro Parlamento a eleger em junho.

Porém, o equilíbrio de poder no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia pode mudar, com o possível aumento de forças conservadoras menos ambiciosas em termos climáticos.
Conflito na Ucrânia: remodelação do mercado de gás
Até 2021, a Rússia era o principal fornecedor europeu de gás natural e de petróleo bruto, representando 44 e 28 por cento respetivamente.

Ainda estava o mundo a recuperar dos efeitos da pandemia da covid-19 quando a invasão russa da Ucrânia, em 2022, vem perturbar gravemente os mercados globais. Entre outras consequências, os mercados europeus de gás refletiram de imediato os custos da energia, que aumentaram acentuadamente.

As sanções europeias aplicadas a Moscovo provocaram o fecho das torneiras ao gás russo e os fluxos globais de gás natural foram significativamente reorientados. O foco dos decisores políticos mudou para a segurança energética.
Oportunidade do GNL
O gás natural liquefeito (GNL) emergiu como um novo interveniente significativo no mercado do gás natural, proporcionando um contributo fundamental para garantir a segurança energética da Europa. 

O GNL é um gás que é arrefecido até -162º C e condensado ao estado líquido. O volume de gás liquefeito é cerca de 600 vezes menor do que em estado líquido e ao ser expedido em grandes tanques criogénicos e transportado em navios ou veículos terrestres passou a substituir uma parte substancial da energia russa abastecida por gasodutos. 

A distribuição do GNL, por ser mais flexível, mudou fundamentalmente a estrutura do mercado europeu de gás de regional e segmentado para um mercado mais integrado e globalista.

Depois da Rússia, os EUA emergiram como o principal fornecedor da Europa nesta nova configuração do mercado global de gás. Os fluxos provenientes do continente norte-americano para a UE duplicaram em 2022.

Para explorar ainda mais o potencial do mercado de GNL, os países europeus fizeram investimentos substanciais para expandir as suas infraestruturas de terminais de regaseificação.

Navio especial, "Neptuno" durante a inauguração do terminal flutuante de gás natural liquefeito "Deutsche Ostsee" no porto de Lubmin, na Alemanha, 14 de janeiro de 2023 | Annegret Hilse - Reuters

A Alemanha, que não tinha nenhum terminal de GNL até ao final de 2022, traçou planos para erguer de imediato várias instalações. Há agora a necessidade de construir mais infraestruturas no centro da União para melhorar a distribuição das áreas costeiras para o território interior do bloco.

Para evitar constrangimentos de dependências, a UE precisa também de diversificar os fornecedores de GNL.

Entretanto, a sociedade civil tem criticado a aposta no GNL. Embora seja aclamado como um combustível de baixo carbono, o GNL emite, na verdade, quantidades significativas de metano – um gás prejudicial com efeito de estufa que é 80 vezes mais poderoso na retenção de calor na atmosfera do que o dióxido de carbono.
Gás fóssil da Rússia

A Rússia tem planos para triplicar a sua capacidade de exportação de GNL até 2030, de forma a atingir 100 milhões de toneladas anuais. Apesar das multiplas sanções adoptados pela UE desde a invasão, a União continua a ser um importador de combustíveis fósseis russos – principalmente em formato GNL sujo.
Embora o plano REPowerEU, lançado em maio de 2022, tenha tentado contrariar a alavancagem energética da Rússia, diversificando as fontes de energia e proibindo as importações de petróleo russo, o afluxo de GNL russo nos portos europeus nunca parou.

Em 2022, 11 por cento do gás que fluiu da Bélgica para a Alemanha teve como origem GNL russo. A Espanha e a Bélgica emergiram como o segundo e terceiro maiores importadores de GNL russo em 2023. Desta forma deverão estar em cima da mesa dos próximos comissários planos para proibirem os fornecedores europeus de assinar novos contratos com Moscovo (projecto Arctic LNG 2) no sentido de reduzir a dependência do gás fóssil russo.
Consumo e crise dos preços da energia fóssil
A tendência energética da última década assentou na diminuição do consumo de combustíveis fósseis, mas o ano de 2022, mais uma vez, apresentou-se como uma exceção - isto porque foi preciso recorrer a combustiveis mais poluente para suprir as necessidades.

Em 2022, Malta com 96,1 por cento continuou a ser o país da UE com a maior percentagem de combustíveis fósseis na energia bruta disponível, seguido de Chipre (89,3%) e Países Baixos (87,6%). A maioria dos outros países da UE tinha participações entre 50 e 85 por cento. Apenas a Suécia (30,4%) e a Finlândia (38,3%) registaram quotas inferiores a 50 por cento.

Entretanto observou-se uma diminuição na produção de energia nuclear nesse ano de 2022.

Já em 2023, o uso de combustíveis fósseis para produzir eletricidade na UE caiu 17 por cento no primeiro semestre. Ou seja, a eletricidade gerada a partir do carvão caiu 23 por cento e o gás natural reduziu-se em 13%, comparando com o mesmo período do ano anterior.

Houve 11 países que registaram uma queda de pelo menos 20 por cento e outros cinco – Portugal, Áustria, Bulgária, Estónia e Finlândia – onde a produção de combustíveis fósseis caiu mais de 30 por cento nos primeiros seis meses de 2023.

Transportes públicos Lisboa. Frota da Carris movidos a gás natural. A Carreira 794 vai passar a circular movida a energia 100 por cento renovável produzida a partir de óleo alimentar usado | Ana Sofia Rodrigues - RTP

Os Países Baixos, por exemplo, utilizaram carvão apenas cinco dias em junho.

Segundo Bruxelas, a UE atingiu o objetivo de reabastecer as instalações de armazenamento de gás em 90 por cento da capacidade cerca de três meses antes de acabar 2023, conseguindo assim baixar e estabilizar os preços da energia.

Ao mesmo tempo, a geração solar aumentou 13 por cento e a produção de energia eólica cinco por cento.

Se a geopolítica das importações de combustíveis fósseis e da energia nuclear ainda pode provocar instabilidade, os governos e os novos comissários europeus têm agora a oportunidade de se unirem em torno de energias renováveis abundantes e partilhar os seus muitos benefícios.
Acelerar a implementação das energias renováveis
A crise energética de 2022-2023 enfatizou o potencial da transição para energias limpas na garantia de fornecimentos de energia acessíveis e no alinhamento das trajetórias económicas com a descarbonização.

Essa transição energética para energias renováveis é um desafio importante que só pode ser enfrentado de forma coordenada, devendo contar com o apoio das instituições da UE e agências de energia regionais e locais.
Uma cerca feita de painéis solares, ao longo de um jardim em Amsterdão, Países Baixos, 23 de abril de 2024. A tela do jardim gera mais energia porque tem efeito dos dois lados | Piroschka van de Wouw - Reuters

Devem ser intensificados esforços para avançar na eficiência energética, melhorar a suficiência energética, acelerar as energias renováveis, apoiar a ascensão de comunidades de energias renováveis, implementar a adaptação às alterações climáticas e, certamente, desenvolver um setor industrial que pode funcionar como alavanca para este novo paradigma.

A energia eólica e solar representaram recentemente mais de 30 por cento da produção de eletricidade na UE. Já a energia hidroelétrica tem sido cada vez mais limitada e volátil desde 2000, cenário agravado pelas secas severas dos últimos anos.

Um fornecimento de energia totalmente renovável pode parecer utópico, mas deverá ser o caminho mais pragmático a seguir em relação aos desafios da crise climática e às faturas mensais dos cidadãos europeus.
Painéis solares bifaciais de 540W num parque de painéis solares da fornecedora de energia Enel Green Power, em Trino, Itália, 5 de março de 2024 |Claudia Greco - Reuters

À medida que a Europa avança em direção a um novo paradigma de energia limpa, os investimentos em energias renováveis - implementar a infraestrutura e desenvolver uma industria compatível - devem ser pensados e acompanhados por uma estratégia de longo prazo que tenha em conta potenciais debilidades no fornecimento dos recursos necessários para a transição.

Para o sucesso das energias renováveis, esta abordagem deverá ser crucial para evitar uma repetição das vulnerabilidades sentidas na UE durante a crise do gás natural.

A União Europeia enfrenta um momento crucial na busca por segurança energética e sustentabilidade. As metas climáticas da UE só poderão ser cumpridas com uma redução da procura de gás fóssil de pelo menos 35 por cento até 2023, em comparação com os níveis de 2019.
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